sexta-feira, 22 de junho de 2007

 

 

quiet nights of quiet stars

 

 

está calma a noite, como é próprio do fim de Junho, na silenciosa dilatação das sombras até aos cantos da casa. mesmo à janela fechada pressinto o rumor das árvores. o ardor do solo. o grande olho amarelo dos girassóis sob os quais pasmo como se fossem templos. está calma a noite, pacífica, atlântica. o aperto no peito é o mesmo de sempre, constrangimento de saudade, é o não-aqui do teu corpo, e a promessa de um dia limpo no azul-negro que se estende sobre as ruas. qualquer coisa em mim tardou e eu atrasei-me para o verão. foi este o meu dia mais longo, de noite feita apenas para brevemente sonhar.

28 de Junho de 2004

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«Junho avança, com o Verão aberto na garganta, na sua urgência de rasgar caminho até ao fim da noite.»
tenho o corpo estendido sobre o contorno da penumbra. o cansaço é acutilante e é possível que eu não esteja em mim. daqui, observo a noite inflamada, acredito - pelo silêncio por detrás da janela - que posso ver o fundo da escuridão.

26 de Junho de 2004

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que farei quando tudo arde? #1

o sol a pique riscava no chão o negro contorno de uma coluna da cidade destruída. caminhei por entre os escombros e, sob um céu despovoado, lá encontrei um vestígio do meu corpo. a minha pele desmoronada como pedra e cal.

24 de Junho de 2004






que farei quando tudo arde? #2

era uma única noite interminável, quieta e densa, não se conseguia ver o fim da sua escuridão. ausentes todos os perfumes, proibidas todas as palavras. de olhos abertos frente ao abismo se aprende o rosto das pequenas mortes.

24 de Junho de 2004

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há homens cujo destino é atravessar o mundo, os seus desertos, os seus abismos, os seus vales, as suas praias, atravessar o mundo inteiro durante a noite, enquanto outros dormem. e se a estes homens doem os pés cansados da incerteza do caminho, é para que os que dormem possam sonhar, e estes acreditam que viram também os mais distantes lugares do mundo, e acreditam também que uma dor desconhecida lhes aflige o corpo antes do sono. e se a cada manhã tudo recomeça, é porque nunca é dado aos homens chegarem ao fim do seu destino. aqui, a noite coincide com o início do mundo. e há homens que têm muitas milhas para andar antes de dormir.

12 de Junho de 2004

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i will not go quietly into the night

 

 

aproxima-se o verão. o verão por que desenfreadamente esperei, contra todas as evidências apressando o inverno, e agora que está próximo, que o sinto no sopro silencioso das árvores na minha pele, sinto medo. na memória das longas noites em claro, o meu corpo estremce de horror. quero um verão, sim, um bálsamo para as feridas, mas algo diferente dos dias de insuportável calor de um agosto passado, no fundo, inexistente.

11 de Junho de 2004

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do ar parado entre as montanhas

 

 

à hora sem sombra
arde na praia o silêncio
e a tua mão no meu corpo.

9 de Junho de 2004

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reino #1

cheira a verão. é o ar parado, suspenso, o silêncio imóvel sobre a paisagem, ampliando o azul deserto sobre a cidade. a estrada de alcatrão arde, e ardem os meus olhos no excesso de luz dentro do automóvel, é isto um pressentimento de ferida, como uma estação que se abre, rasgando a membrana dos dias. cehira a verão, é a lua cheia, as ruas cheias de sol, e a certeza do mar por detrás dos montes e dos prédios.

4 de Junho de 2004

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a noite pela terra

 

 

ao fechar as portadas , a noite penetrou deixando no varandim os incidentes do dia, dos dias.
é em horas assim que a noite chega como um sopro, vinda de lugares distantes, e nos alcança com a proximidade das coisas conhecidas, e quando nela assim entramos não há lugar para o sono, porque a noite penetra em todos os cantos de casa e enche-a do seu perfume em que, rendidos, reconhecemos a substância de um reino longínquo a que estamos prometidos.

3 de Junho de 2004

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pelos labirintos da sede

 

 

servem os dias de sol para esquecer o que dói. sobreposta luz excessiva sobre a táctil evidência da ferida, caminhamos na certeza da sombra. a terra é seca porque os templos ruíram e o céu deserto inteiro desabou sobre a claridade dos espaços, onde a água é sempre longínqua. como a saudade. serve o verão para queimar os pés no ardor do solo, que assim esquecem a dor de caminhar rente ao desmoronamento das memórias. ainda vivemos um tempo esquartejado, e ainda é ofício das mulheres que choram brotar as lágrimas nos seus escombros. mas ainda assim, porque é Junho agora, resistimos e seguimos adiante. felizmente, as mulheres continuam lindas. corajosas, elas levam as crias até onde há sombra e alimento.

2 de Junho de 2004

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Ítaca #4

agora que Ulisses repousa
o merecido descanso
sobre a pedra do regresso

é tempo de voltar os olhos a outros mares
e deixar-me doer o coração por outras mágoas
agora não tão próximas
da partida e da ferida

22 de Maio de 2004

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Por vezes, precisávamos que tudo fosse simples

— como a luz esmorecendo sobre a tarde,
o verão balouçando nas copas das árvores,
os pés silenciosos no ardor do solo —

que tudo fosse simples como o amor pela terra.

22 de Maio de 2004

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explicação do verão

ouves, amor, o som dos pássaros à beira da água
ou o silêncio por trás da janela fechada

são tudo sinais da linguagem muda do chão
é por isso que o azul é deserto
e o sol abrasador

para que reconheçamos o ardor do solo
na inclinação das sombras
sobre as casas vazias feridas de branco
ou de excesso de luz

18 de Maio de 2004

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little black spot

 

 

gostava de riscar o teu nome no chão com a cara encostada às árvores. talvez então me doessem menos as pálpebras que encerram dois sóis negros.

Maio 2003



* * *



é bom o silêncio ao meio-dia, contigo, sobre a praia. refrescamos as feridas ao pé da água, enquanto re-aprendemos o amor à sombra perfumada das amoreiras.

Maio 2004

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sandstones

 

 

I

três pedras negras
habitam a minha sede

da sua quietude
se alimenta
a minha fome

     * * *

três pedras negras
uma      a      uma      as movo


     uma sobre o abismo
     uma sobre o deserto

     uma sob o sol.



II

três pedras negras
uma a uma as movo


uma sobre a pele
uma sobre o chão
uma sob a ferida.

10 de Maio de 2004

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Maio

 

 

parecia Maio ainda atrasado, demorado pelos arvoredos, ainda a vestir-se de folhas. Maia sobre a pedra, Maio sobre a terra, Maio sobre o pássaro. abre-se subitamente a tarde, Maio sacode no exterior a poeira fina do exílio da superfície das coisas. se por entre as nuvens, um raio de sol de escapa, é já suficiente para acender de amarelo o dia, e é já o meu reino prometido, dos lugares habitados pelo murmúrio antigos dos deuses nos jardins.

7 de Maio de 2004

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do pão para a boca

 

 

se afinal nos cabelos de Penélope o sol brilhava
se o próprio mar da Ítaca partilhava o sal das suas lágrimas
então talvez seja possível começar a perdoar Ulisses
— aquele que de coração magoado
não aprendera ainda a regressar.


e eu sem saber
que no exercício da tristeza
uma outra morte se urdia
que apesar do medo e da distância
era clara a noite sobre a ilha.


5 de Maio de 2004

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:: promessa de sangue ::

sobre as pálpebras       sobre os ombros
o peso de um verão adiado

há-de vir o dia
             o sol
e o seu reino claro de espaços

entretanto
urdem as sombras os nosso segredos.


5 de Maio de 2004

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*oásis*

aqui chegamos nós à beira da água
e ainda assim se cristaliza a substância da nossa sede
é o silêncio      o céu deserto      o azul esmagador
ou o sol sobre a ferida        a palavra sobre o chão.



4 de Maio de 2004

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afirmação:

de entre todas as coisas do mundo
não há nada que ame mais do que o sol.

3 de Maio de 2004

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o lugar das palavras

 

 

na medida justa do silêncio
se constrói o lugar da palavra
templo ou substância
— ardendo sob o sol.

30 de Abril de 2004

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post-scriptum

 

 

Era preciso escrever, mesmo apesar do cansaço, e da pesada fibra nocturna da penumbra. Escrever para resgatar o tempo que passa, os momentos que adiei para depois, escrever como quem procura salvar alguma coisa, sabendo bem — como Duras — que a escrita não salva de coisa nenhuma. E é verdade que os dias de sol não servem para escrever, aprendemos a guardar as palavras na margem da boca, para depois, porque a primeira urgência é apenas fruir do lento ardor do solo. Por isso se guarda este ofício para as noites, quando as sombras se abeiram da insónia, mesmo quando não há medo, mesmo quando há só silêncio pacífico. Respiro o azul-negro das horas tardias já em pressentimento do verão, a partir de agora sei que a minha estação está próxima e que em breve desenrolarei os membros entorpecidos, como asas guardadas pelo inverno. Acontece que voltei a ver com frequência o rosto diluído da mulher junto ao cais, o seu vestido branco ondulando ao sabor do vento, e sei que naquele ar há um perfume de magnólias. O mar está próximo, e sei que se caminhar, se a vir dar um passo, há-de ir pelo meio das ruas estreitas de uma vila pequena em direcção à praia, onde os muros brancos de cal ardem sobre o sol, e os amantes que passam descansam o medo à sombra das amoreiras.

27 de Abril de 2004

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canícula

 

 

Há ainda o cansaço, apensar da canícula, ou se calhar por isso mesmo, nos olhos pesando as pálpebras, a fecharem-se como conchas, uma sugestão de tempo imóvel na vontade de deixar descair o corpo até ao chão, não render-me a nada senão à alegria sob o sol.

26 de Abril de 2004

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preparação

 

 

O pátio está silencioso ao fim da tarde. Circundado por vastos cachos de rododendros e jasmim, que emergem da cal dos muros, é o lugar exacto do sol na hora do poente. Do outro lado, a estrada negra e deserta. Nenhum ruído perturba a quietude da cena. Nenhuma voz atravessa a cidade até à praia. Lentamente, adensa-se a penumbra — quase táctil — e azulam-se as sombras, em breve a noite riscará de negros contornos os corpos que se passeiam à beira-mar. Neste silêncio, amplo e imóvel, se acontece o medo é só porque alguns olhos, adentrando a escuridão, se parecem com estrelas longínquas.

21 de Abril de 2004

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praia da amoreira

 

 

1
só uma sombra negra
denuncia junto à praia
o hálito fresco das amoreiras



2
a luz arde nas pálpebras
a claridade lisa como um espelho
talvez o sal de tão vasto mar



3
ao meio-dia
a estrada ferve e nós silenciamos
o ardor das feridas.

19 de Abril de 2004

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meio-dia

 

 

Tenho as primerias páginas rascunhadas daquela história à espera, possivelmente, de uma luz maior, ou de um verão mais doloroso, para que arrancar à brancura do silêncio as palavras agudas da ausência fosse, enfim, tarefa mais fácil.
Estamos imóveis perante a paisagem suspensa, é meio-dia queimando sobre o areal, os passos ardem sobre o espaço vasto. Não há uma erva que se mova, o próprio vento não se precipita para o céu deserto. A luz arde nas pálpebras, de muito contemplarem o mar ao longe. Há um carro parado na beira a estrada, um homem a olha, escavada na terra ígnea das planícies. Ao seu lado, uma mulher enverga uma camisola branca.

19 de Abril de 2004

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lugar comum

 

 

Se me mantenho silenciosa é por aproximação para com as árvores. Compreender que se as mãos se afundam na terra negra é em busca de raízes, e se o húmus vem agarrado às unhas no regresso, é para dele se constituir alimento. Permaneço aqui, no lugar desta tarde incerta, aguardando um murmúrio — de folhagens ou de deuses —, um sopro, que já não me fale da noite longa, mas do canto do vento nos milheirais. Semelhante à memória imóvel é o caminho até à praia, queimado de mudos passos, ardendo sob o sol.

17 de Abril de 2004

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porquê morrer?
se até as aves                        fazem ninho sobre o mar
se já a claridade invade           os cantos vazios da casa
se no silêncio das tardes          a própria ferida
se torna matéria solar

concede às palavras                 o ânimo inspirado
de circundarem as sombras       rente aos muros

diz-me —
— se até das cinzas se fabrica o pão
porquê morrer?

17 de Abril de 2004

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regresso

 

 

de coração magoado       então
Ulisses se demora

estranho o tardio entedimento       como
o leve torpor de um longo sono

compreender na distância —
— pássaro ferido
não se aventura a sobrevoar
                     o mar imenso.

15 de Abril de 2004

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das horas mansas

 

 

dos lugares silenciosos

rente aos muros          a claridade
irrompe pelas janelas
um quadrado azul          recorta
o silêncio interior

— da mesma substância da luz
uma moradia de palavras
habitada de contornos negros —

um canto subitamente feito claro
                             o odor antigo
                             do jasmim
                             da madeira
                             repousa na quietude das horas
                                                                  da tarde.

12 de Abril de 2004

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*jasmim*

a palavra circunda
um ponto branco
mas não apreende
a substância do seu perfume

é este o odor das noites
ocupando o espaço todo
disponível para o silêncio

escrever —
— ainda tão distante
da matéria do amor.

12 de Abril de 2004

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ÍTACA, ainda

 

 

Penélope adormecida
sobre a negra noite deposita
o amargo silêncio da espera.


Ulisses ausente ao largo
apressa o coração magoado
em direcção à ilha rochosa
à terra mais firme
que o sonho que o demora.

11 de Abril de 2004

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dos perfumes

 

 

minúscula a flor do jasmim
            ainda assim
            suficiente
para transformar este quarto            em luz exterior.

9 de Abril de 2004

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ausência

permitam-me um pouco do néctar em cuja falta
padeço e morro
permitam-me que me demore ao sol ou rente
à claridade das varandas
nada mais procuro que um sopro de verão que anime
a fértil substância dos livros.

9 de Abril de 2004

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moderato cantabile #4

era inevitavelmente para isto que caminhava, estas duas palavras que são como o verão riscado sobre a memória, se entretanto já me envolvia o perfume e o enlevo da noite morna, a memória dos passos na varanda, de todos os nomes que entretanto esqueci, rostos despedaçados contra o azul e contra a exaltação das flores, ao longe um canto antigo e imenso, sem dúvida o mar, contra todo o esquecimento.

5 de Abril de 2004

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nocturno

 

 

é este o cheiro das noites atlânticas, dos murmúrios rente ao calor sossegado das varandas, onde os corpos repousam do ardol do sol, cheios de íntimas insinuações, como se soubessem decifrar a matéria negra do silêncio. é este o cheiro do próprio verão, das promessas feitas porque os dias são longos e justos, enfim, da própria substância do desejo.

5 de Abril de 2004

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«As minhas palavras dão nomes às coisas que vejo. E os meus olhos são muito tendenciosos, porque geralmente viram-se para dentro.»

Junho de 2001

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explicação da chuva

inexplicavelmente veio a chuva. e inexplicavelmente digo porque as previsões não assentam na matéria dos meus dias, porque não são à medida dos meus sonhos os assombros meteorológicos. agora estão as janelas coloridas de cinzento, acredito que se pode ouvir o vento a bater nas vidraças, e a falta de qualquer coisa novamente assoma, como sempre acontece quando o olhar enegrece e as sombras emergem de dentro das pálpebras. é o peso excessivo das horas sobre o corpo, e custa mais olhar para cima se o céu está escuro e a tarde imprecisa. mesmo para os livros é um tempo desajustado, se há que sair para a rua, enfrentar os pingos sobre os pulsos, a estrada absorta numa quieta melancolia de luzes.

30 de Março de 2004

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moderato cantabile #3

há meses inteiros - como se não tivesse havido entretanto senão inverno - sonho com a Avenida Atlântica, com as praias desertas, com o destino dos caminhantes silênciosos nas noites perfumadas de sal, com uma mulher que caminha rumo ao cais e um navio possivelmente ancorado ao largo, em majestosa indiferença, depois um rosto de pedra com o olhar fixo no vazio, as pálpebras carregadas de sombras e o peito ardendo com qualquer coisa que se move por dentro, destrutiva, mas acima disso tudo a cadência das palavras, o ritmo exacto, a medida justa dos silêncios, o amor em carne viva riscado a negro sobre as páginas, a memória do azul mais esplêndido que conheci, esse das viagens pela estrada que arde rumo a um lugar qulquer ao pé da água, próprio para o amor ou para poesia.

25 de Março de 2004

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do livro das explicações

 

 

porque as heras já florescem rente aos muros
porque as sombras se obliquam sobre o chão
porque o ar levemente perfumado
indica que estão próximos os dias
das casas brancas de janelas abertas para o mar
dos finais de tarde no silêncio das varandas
uma memória ténue do odor das magnólias
pode ser que seja Duras
o livro pousado sobre o colo
uma já certeza de verão
mesmo se o vento ainda sopra frio nos caminhos.

25 de Março de 2004

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do silêncio ao fundo

 

 

são as sombras que flutuam como pássaros
pelo fundo dos teus olhos
e a noite principia
no círculo negro que encerram

estar assim no silêncio da incerteza
a única forma possível para o amor
desconhecer
― mesmo assim tactear ―
que perigos se escondem
no escuro das profundezas.

19 de Março de 2004

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preparar o equinócio

 

 

1
lidamos dia a dia com as pequenas mortes.
por mim, só espero aquela que devolve à terra as folhas,
que engendra das cinzas e do húmus o corpo justo
que há-de vir.

2
a descida ao inferno não dura uma vida inteira
só metade de nós se mistura com as sombras
o resto permanece aguardando pacientemente
o grão fértil que emerge sob o sol.

18 de Março de 2004

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titubeando

ainda não passou
ainda não é seguro que volte
não é ainda tempo de assentar
os pés neste chão

ouso apenas um risco
para contrapôr ao silêncio

sem vestígio do hábito
que matéria sustentaria os meus dias?

12 de Março de 2004

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do sono: pequeno exercício da morte

 

 

[hypnos]

venho do lugar escuro do sono
onde as palavras descansam
em florestas de férteis silêncios

onde as pálpebras se tornam asas
onde as feridas refrescam o ardor

— mais justa é a forma do mundo
com renovados olhos abertos.

9 de Março de 2004





[morpheus]

não reclamar o que de mim
permanece diluído no silêncio
atravessar o denso bosque
apenas para me misturar
com as sombras

— mais leve é o meu corpo
entre a substância fina
dos sonhos.

9 de Março de 2004

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*antecipação*

gosto do meio-dia a pique sobre a praia
a hora em que o sol aperta como uma corda
o desejo o silêncio o mar a pele que arde
o olhar escurecido pelo excesso de luz.

8 de Março de 2004

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verão

 

 

nos lugares mais escuros da noite
no chão que arde sob o impiedoso
sol de verão
o nosso corpo toma a forma do silêncio

na planície lenta
com as pupilas feridas pela luz
o desejo faz bolha sob a pele

deitamo-nos nus sobre a terra
um pressentimento de mar nos basta.

3 de Março de 2004

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resistir

não pertenço a este lugar
de sombras e paredes frias
— aqui só ensaiamos o calor
no refúgio dos cobertores.

é inverno ainda
e as minhas mãos sabem-no.

contrariar com as palavras
o mundo desmedido
é resistir.

3 de Março de 2004

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os caminhos do Nilo

 

 

1
se é promessa o verão vindouro
que a terra se inunde também
das lágrimas caudalosas que descem
desde a planície seca das histórias
até ao delta dos meus olhos


2
tomamos o caminho das águas lentas
porque nelas habitam as memórias dos deuses
e a promessa de pão para as nossas bocas


3
aquele que há-de chegar virá do deserto
e atravessará o rio em direcção a um oásis branco.

1 de Março de 2004

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the beautiful one who has come

o tempo nega a promessa antiga
de que o meu rosto seria moldado
com as areias do deserto longínquo

da perfeição resta apenas
o ritmo calcário da memória
e do mito.

1 de Março de 2004

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a partir de Graça Pires

a minha infância fechada
numa casa branca voltada para o mar
no interior o cheiro dos bolos
o barulho das ondas
o sol de um verão antigo cheio de risos
mas também os gatos
os que partiram
a construção da tristeza
a aprendizagem do ofício de crescer
com papoilas secas nos olhos.

09 de Fevereiro de 2004

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cansaço
o lugar extremo do silêncio.

1 de Março de 2004

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quinta-feira, 21 de junho de 2007

 

 

 

 

dos desertos #2

aquele que ama o deserto
caminhará de frente para o sol
e sentir-se-á feliz e pleno
com o ardor da areia no corpo,
as pupilas feridas pela luz.


27 de Fevereiro de 2004

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:: por motivo do adiantado da hora ::

agora, acima de tudo,
há em mim qualquer coisa
que me pesa sobre as pálpebras
que me coloca em desacordo com a noite
este cansaço que não pertence à minha vontade.

23 de Fevereiro de 2004

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das águas caudalosas do oriente

 

 

não sei senão que o coração se me aperta
se pressente a terra cujo pó não respirou

— na falta de areia para enterrar os dedos
assim cubro o corpo com o véu do mito

tacteio na densa penumbra da noite longínqua
um rosto de mulher em cuja sombra me eternizo.

22 de Fevereiro de 2004

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varandas

porque a varanda é o lugar privilegiado do sol
é onde a sombra se forma em colunas negras
e onde o silêncio — rente à penumbra fina —
transpira o hálito azul o rumor das manhãs
ou o tom nocturno das praias distantes
a medida justa das coisas
a claridade precisa da poesia.

21 de Fevereiro de 2004

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para a reconstrução de um mundo puro

num quarto fechado a luz não entra —
— a noite longa crava-se nas paredes
habitadas de negras sombras
e tu não conheces senão
os estreitos corredores do medo

não suspeitas que tão pouco
te separa de um reino de sol
onde serias luminoso e inteiro
na medida justa do teu corpo
onde habita o sopro dos deuses

— se soubesses tactear a manhã
junto ao silêncio em que te assombras.

20 de Fevereiro de 2004

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exílios #2

trazer o deserto por dentro
ser-se o próprio corpo do sol
a pique sobre a memória
cavando negras sombras
sobre a areia que arde
sobre a saudade que ferve

ser-se a cidade em ruínas
o silencio brutal entre os escombros
o cansaço em que a própria sede
se esgota
a noite longa que se abisma
sobre a ferida

mas ser-se também a manhã gloriosa
a luz a entrar nas casas pelas janelas
o dia novo reconstruído
depois de vencida a substância do medo.

20 de Fevereiro de 2004

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da noite interior

 

 

1
no negrume do quarto
a noite pesa


2
tardia sobre os ombros
descompostos de cansaço
a hora hesita e circunda
a frágil matéria das palavras


3
entre sombras
o nosso corpo se constrói

na ferida do silêncio


4
amanhã ainda seremos vivos
sob a medida precisa do sol.

19 de Fevereiro de 2004

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dedicatória

 

 

estamos aqui
e é nosso este lugar de sol
é possível que doa o desencontro
mas não importa
porque o verão está à nossa espera
e há que apressarmo-nos
a despirmo-nos do medo

— agosto é o nosso reino
e pertence-nos a luz
que habita a terra no sul.

17 de Fevereiro de 2004

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terra

 

 

1
no silêncio das profundezas
alguma coisa se nomeia

é assim ter um lugar vivo
garantido pelas palavras


2
auscultar a superfície da terra
tactear
o húmus pressentido abaixo


3
para além de tudo o que morre
há o lugar escuro das palavras
assim como o das cinzas sobre o solo
negro contorno das coisas vivas
matéria-prima do silêncio.


4
ser-se corpo fértil
verde do verde que alimenta o chão.

16 de Fevereiro de 2004

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apesar do frio

porque nos desertos os deuses habitam
ainda os lugares recônditos do silêncio
aqui me sento e espero a poesia

apesar do frio

14 de Fevereiro de 2004

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húmus

do Lat. humus
s. m., (Bot.),

terra vegetal que fornece a nutrição às plantas;

material orgânico derivado da decomposição de matéria animal e vegetal que existe (em mistura) na camada superior dos solos.




porque o corpo pertence à terra
e porque os olhos são fundas raízes
pela noite adentro
são afinal as cinzas
o nosso alimento
que as mãos revolvem

— é ser-se fértil onde outros perecem
matéria-prima do silêncio
ou dos regressos
um olhar para dentro
saber

(não há nada que morra ou se esgote).

14 de Fevereiro de 2004

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[interior]


1

a casa fechada
o verão demora-se pelas paredes brancas
inclina-se a tarde pela praia


2
as janelas abertas de par em par
um quadrado de luz rasga o silêncio
o dia aureolado de azul


3
o rumor do mar ao longe
os joelhos descansados sobre o chão
os corredores de súbito inquietos
é este o lugar que o medo habita


4
densas são as sombras
negra a noite perfumada.

11 de Fevereiro de 2004





[exterior]

1

a estrada arde
sob o hálito quente do deserto


2
nenhuma protecção tem o corpo
contra o grande olho aberto do sol
assim suspenso na paisagem


3
a pique o gume do silêncio
recorta o negro contorno do lugar
— aqui não perguntamos


4
dizem que os deuses andam por aqui
e eu acredito
se os vejo e pressinto
na linha pura dos teus ombros.

12 de Fevereiro de 2004

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auscultação da terra

 

 

há quem diga que os deuses
permanecem nos lugares inabitáveis
onde nenhum rumor é possível
onde a terra é ferida aberta e nós

os que vagueamos à procura
nada sabemos
do que dizem os ventos no deserto.

9 de Fevereiro de 2004

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a propósito de Daniel Faria


primeira explicação do amor

olha, é assim o amor
cercar-me o verde dos teus olhos
acolher o ardor do sol
a amargura do silêncio
junto à frágil negrura das sombras
e beber da própria substância
da nossa sede.

9 de Fevereiro de 2004






explicação do deserto

onde os outros ardem
sustêm ferida
assim sou eu —
— feliz sob o sol.

11 de Fevereiro de 2004







explicação da luz

os ângulos da casa dobrados
no recorte negro das sombras
o lugar predisposto para o corpo pleno
o sol queimando o chão pelas janelas

11 de Fevereiro de 2004







explicação do silêncio

o que não se sabe
das profundezas da palavra
o que não se pergunta

11 de Fevereiro de 2004






segunda explicação do deserto

ardem sob o sol
fundas raízes
mas é nesse árido sossego
que a noite descansa
e a água se prepara —
— onde era a ferida aqui e além
agora um jardim florido.

12 de Fevereiro de 2004







segunda explicação do amor

olha, é assim o amor —
— a noite negra e longa
que eternamente aguarda
a manhã que nunca vem.

12 de Fevereiro de 2004







terceira explicação do amor

saber assim
que o peito dói em vão.

12 de Fevereiro de 2004







explicação da manhã

acordar
no pressentimento do orvalho
respirar
o ar frio rodeando as árvores
seguir o dia aureolado de azul
voluntariosos são
os que acreditam no sol.

13 de Fevereiro de 2004

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claro-escuro #1

os lugares vazios da terra
os interiores das casas
onde as sombras se habitam de vida
onde o silêncio se banha de luz.

8 de Fevereiro de 2004

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a loja dos barros

 

 

olho a ânfora e o meu ventre
em concavidade semelhante
ambos silenciam a ferida que dói
e se abrem
guardando
o lugar vazio onde as lágrimas
se acomodam
junto ao sal do mar.

7 de Fevereiro de 2004

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forget me not

 

 

mesmo as mãos que gelam
à procura do gesto que não se forma
não renunciam ao sopro azul
da eternidade a florir
tímida sob o sol

7 de Fevereiro de 2004

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à janela

 

 

no cheiro da terra o dia próximo
o sol sobre as coisas - como eu -
imóveis e lentas
invade o quarto
é promessa de primavera.


6 de Fevereiro de 2004

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desmoronamento

 

 

não me perguntes.
de mim só sei que me doem
estas noites assim bravias
onde afinal nada parece de acordo
com o meu improvável amor por ti.

4 de Fevereiro de 2004

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sobre a noite

a noite, com os seus túneis e subterrâneos. as vozes que murmuram pelos cantos escondidos das ruas. uma pulsação, um ritmo, um sopro. faz-se a noite desta febre, do não saber-se o que é, de atravessar maravilhado o negro da insónia.

2 de Fevereiro de 2004

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apontamento

 

 

sabes que escrevo com as mãos frias. escrevo como quem escava, violento os dedos pálidos que desfalecem no rigor do inverno no interior deste quarto. há uma janela fechada e um telefone que hoje não toca. recordo vagamente este lugar, noutros tempos. recordo o mesmo frio, o mesmo canto escuro que tudo sabe de mim, este mesmo aperto no peito que é a minha respiração interna, e sempre sempre sempre a falta de alguma coisa, de um suspiro teu, um sopro, um afago, ou um vento quente pela noite, qualquer coisa que me acolha. há-de passar. a noite longa não durará para sempre. há já cheiro a pêssegos nos teus cabelos.

30 de Janeiro de 2004

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moderato cantabile #2

no interior da casa
o cheiro antigo dos livros
e o quadrado azul do verão
a claridade densa na janela
e um odor conhecido
invade o quarto desde o jardim
é agosto coroado de sol
na cidade que arde no silêncio
das tardes assim brancas
voltadas para o mar

existe uma mulher nessa casa
um piano velho que murmura
e o perfume das magnólias
como se não houvesse outro no mundo.

31 de Janeiro de 2004

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Janeiro desmente
o auge do inverno
em cada manhã de sol
mais próxima a liberdade
e o azul.

21 de Janeiro de 2004





tardes de Janeiro


I


No final das tardes de Janeiro
o azul possível é mais meu
inteiro como um quadro
absoluto como os mares

e eu pertenço
a esse ar mais livre
cheio de rigor e de verdade.

29 de Janeiro de 2004

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moderato cantabile

 

 

moderato cantabile

aquele vulto além no cais
ou a sombra que se estende
pela avenida em brasa
o perfume estonteante das magnólias
transpirado no ar do verão
talvez os meus passos incertos
arrastando qualquer coisa pelas ruas
ou a tarde que cai sobre os muros
alheia ao murmurar das casas
por entre os jardins

o tom atlântico das palavras
os dedos que ardem sobre os livros.

26 de Janeiro de 2004

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dos rostos desconhecidos #1

sobre Remedios Varo, Cazadora de Astros


dos lugares ensombrados
espessos do negro da noite
fiz o meu reino
e viajo
próxima do murmúrio dos deuses
em fragmentárias explosões de luz
semelhantes
aos ritmos do silêncio.

29 de Janeiro de 2004





dos rostos desconhecidos #2

sobre Jean Delville, Madame Stuart Merrill


o último lugar possível da palavra
no negro contorno
dos lugares impossíveis da terra
uma floresta de sombras
um reino de espectros de luz
preenchem as horas mortas
do meu olhar ausente.

29 de Janeiro de 2004





dos rostos desconhecidos #3

sobre Modigliani, Madame Zborowska


mas há ainda os lugares pacíficos
os escolhos do silêncio
ou um hábito de serenidade
sobre a face

os lugares escritos
por entre paredes brancas
os corredos tranquilos
onde os monstros
- ou os astros -
dormem.

29 de Janeiro de 2004

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Ítaca #3

eis que vieste.
mas não saberei dizer se voltaste
porque é sepre outro que regressa
diferente daquele que partiu
esse que fica para sempre na bruma

mas pode ser
que também eu seja outra
- que menos saiba do que dói -
não aquela que espera
mas a que fez das noites longas
o seu ofício.

26 de Janeiro de 2004

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:: do silêncio interior ::

pesam-me as pálpebras e os ombros
porque a noite é longa
e as árvores que morrem
não sopram qualquer rumor
que certifique a presença dos deuses
no vento que corre pelos desertos.

26 de Janeiro de 2004

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a partir de Daniel Faria

o que dói
é aguardar-te por entre as sombras

tu que te demoras
enquanto a eternidade
se me acaba nas mãos

diz-me agora desses desertos azuis
por onde te perdeste noutros braços
eu que só conheço esta noite longa
em que na espera me desfaço.

20 de Janeiro de 2004

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sob os plátanos

estas são as árvores
das ruas da minha infância
são estes os corredores
onde aprendi o amor e o medo
o negro da noite
o sol do inverno
sob uma cúpula de ramos

são estas as árvores que guardam
o que resta da minha infância
silenciosas desde então
desde que se acabaram
os meus passos sobre o granito
das ruas.

22 de Janeiro de 2004

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se soubessemos dos limites da noite
não caminharíamos sozinhas pela terra
em busca do lugar
onde caem as estrelas nas nossas mãos.

20 de Janeiro de 2004

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alguma coisa me lembra
que o tempo e a doçura
se querem brandos
mas seguros
que a paixão existe.

20 de Janeiro de 2004

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as horas mortas

 

 

é nas margens do medo
que sempre me movo
titubeante
como entre paredes estreitas
preenche-me o escuro e
o assombro
é grande demais para tão
pequeno corpo este sopro
esta coisa improvável
de ser viva.

16 de Janeiro de 2004

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[promessa]

carrego nas mãos
os destroços da cidade antiga
suas ruas suas arcadas seus templos
suas luminosas colunas de sal
e toda a ruína me cabe neste gesto

pode ser que a noite longa
esteja ainda para findar
é duro o inverno
mas certa a promessa do corpo

se qualquer coisa aqui se acaba
pode ser que seja o medo afinal
enfim que os fantasmas morram
ou que seja livre a substância do meu sono.

13 de Janeiro de 2004

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Re: Re: Re: Ítaca revisitada

enquanto Ulisses voga
ébrio do azul imenso e
esplêndido dos desertos
na fragilidade da distância
uma ilha improvável se desfaz

enquanto Ulisses contempla e sonha
- Circe, a caverna, as aves de partida -
dorme Penélope, abandonada e triste

[também o tempo a memória os afectos
são desertos]

14 de Janeiro de 2004

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[tremor]

no canto escuro
- que tudo sabe -
um pequeno ponto pulsa
quem saberá se é
princípio de luz
já fim de Inverno,
se os dias crescem
e as perguntas descansam?

7 de Janeiro de 2004

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:: os frutos ::

prolongo a acidez, recordo noites distantes, o vento na face, o rio para lá da estrada, a claridade inesperada da imensa noite negra. aconchego a saudade como um fruto. sacio a sede de palavras na acidez que imagino.

27 de Dezembro de 2003

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assim o inverno

 

 

chega o tempo das laranjas. das camisolas brancas, dos cachecóis às riscas, das mãos que finalmente sucumbem às luvas, gelando por baixo da lã a ausência habitual. é tempo de abrir as janelas de par em par, deixar entrar a claridade breve das manhãs de sol. é quase tempo dos dias que crescem. se fecho os olhos por um instante, se me descuido, é subitamente verão e não fechei ainda todos os livros espalhados pela casa. sento-me na pedra fria e murmuro palavras improváveis. espero-te ainda.

é tempo de laranjas
de dedos em ferida
descascando gomos
de um corpo semelhante ao sol
que transporta em si qualquer coisa
doce
ácida
escarlate
necessária
para que seja possível
conhecer-se o sabor de Janeiro.


27 de Dezembro de 2003

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"as praias desertas continuam"

nem sempre a tristeza é triste
por vezes é só outra coisa
qualquer
camisola velha pousada esquecida
num canto escuro do armário
mas na malha ainda a ideia prometida
da ternura
qualquer coisa como Jobim a rasgar
a noite, uma inútil paisagem

e se é inverno e as mãos gelam e o peito dói
imagino o abraço o cobertor a fogueira
aqueço-me
na própria ideia do calor.

16 de Dezembro de 2003

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:: estremecer ::

olha o meu peito aberto
em flor
grita arde lateja mas vive
estremeço *
- que é esvaziar-me o meu ofício -
no que abandono, no que te dou
é que existo.


* do Lat. extremescere
v. tr.,
fazer tremer;
causar tremor a;
abalar, sacudir;
sobressaltar, assustar;
amar em extremo.


12 de Dezembro de 2003

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apesar da noite

 

 

mas há ainda a noite
sob os cobertores macios
uma presença morna
para dispersar o cansaço
um lugar de aconchego
- ainda que remoto e precário -
para que os medos se desmontem

como é terno o desencontro
quando sossega este choro imperceptível.

12 de Dezembro de 2003

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inverno #1

camisolas brancas
cachecóis às riscas
um sobretudo cinzento
as mãos perdidas pelos bolsos
as ruas vazias
um telefone mudo
o aperto da saudade
- as palavras mais cortantes
que antes -
assim se constrói
este exílio dos dias frios.

6 de Dezembro de 2003





inverno #2

é assim
as mãos geladas
os passos tristes
pelo passeio
as próprias ruas
em cinzenta amargura
de te ver partir

6 de Dezembro de 2003





inverno #3

chove por dentro destes buracos
no peito
dói o frio nas mãos vazias
- porque o inverno não é feito
senão de mãos que gelam -
e nas ruas
acaso algum engano me leve
aos lugares onde não estás
enegrecem as sombras
sopra o vento mais forte
irado e triste.

6 de Dezembro de 2003

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à luz fria de novembro
por entre as ruas, por entre as árvores
no espelho iluminado do rio, o vento
balançando as sombras presas aos pés
e nós com as mãos perdidas pelos bolsos
o teu rosto aceso possivelmente
como as noites de inverno afinal
se tecem de uma inexplicável claridade.

26 de Novembro de 2003





[dezembro]

ser o nome que o frio divide
a cidade estranha onde tu faltas
onde o vento sobra nas árvores
as mesmas mãos mas perdidas
pelos bolsos como pedras lisas
que olho atravesso e pergunto
se ainda sabem coisas de ti.

27 de Novembro de 2003





[do frio]

à falta de um abrigo para dezembro
aqueço-me na memória distante
da estrada que arde sob o sol
da tarde lancinante atrás dos montes
onde aprendemos no sal da pele
a lentidão dos dias
[não havia ainda mundo para conquistar
nem morte que se anunciasse]

27 de Novembro de 2003

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[tacto]

 

 

olha
repara como as paredes te olham
como as próprias sombras sabem
que tens medo do lugar escuro
daquele canto que tudo sabe
e por isso avançam sobre ti
carregadas de dedos e de pálpebras.

25 de Novembro de 2003





carregadas de dedos e de pálpebras
avançavam para mim
do canto escuro e de outros sítios
improváveis
à luz fria de novembro
- o mais terno dos meses
afinal

26 de Novembro de 2003

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[little black stone]

Minha pedra de peito
onde mordo onde morro
onde estás morto
movo-te.


escrito por P.


os dedos em estilete
corto a fundo
pela carne magoada
encontro um pequeno
buraco negro
substituo
o coração
por uma pedrinha preta.

22 de Novembro de 2003

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[para uma noite fria]

estremeço
desdobro-me em arrepio
mas ainda assim
não arrisco.

19 de Novembro de 2003

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surpreendo-me a consultar os males comuns em busca do que me distinga
surpreendo-me, insistentemente,
a dispersar a morte com as mãos
mas a sua matéria escura trago-a
agarrada aos dedos
o peito desarranjado desmanchado
e é assim
que a morte vai cobrando a negrura
que lhe devo
de tanto conversar com um canto
que só me diz de mim o que morre.

4 de Novembro de 2003

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dizer deste gosto pela obscuridade
a simpatia pelas sombras disformes
pela escuridão aguda que se passeia
pelas paredes anoitecidas ou ainda
pelo que há de improvável nestas horas
de delírios contidos encenados
como se em cada coisa na própria casa
flutuasse a transparência da morte.

20 de Outubro de 2003

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[da terra]

se conheço alguma coisa da terra
é este chão de cinza sob os pés
a certeza de um inferno mais abaixo
onde os corpos dançam e os quartos
se pintam se sombras para afugentar
a noite.

19 de Outubro de 2003

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para habitar um quarto que nada saiba de mim
mudei a cama para um espaço sem cantos
o quadrado da janela acima dos ombros
só me custam ainda os primeiros minutos
em que acordo com o rasto de uma memória
presa ao interior dos olhos nas pálpebras
cerradas do meu coração escangalhado.

17 de Outubro de 2003

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[recado]

agora que sei que não vens
não me aflige não esperar-te
aflige-me apenas o que
deixamos para trás
e o tempo todo que falta
até que a minha vida se cumpra.

13 de Outubro de 2003

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Re:

Sofro de um prolapso sistólico da válvula mitral que desde a infância determina que não sou capaz de grandes corridas, que o peito frequentemente se me aperta em palpitações confrangedoras, que um mal de ansiedade gritante ocupa os meus dias. Os meus passos traduzem-se em respiração ofegante, as minhas noites em longas lutas contra o cansaço. Tenho uma relação frágil com a minha seratonina, invento pretextos para que o desequilíbrio se desfaça, e todo o meu tempo é passado no constante sobressalto de não saber sossegar. Custa-me o tempo que não passa. Indigna-me a mediocridade, a criança que não é incentivada a consultar o dicionário. Arrebata-me a preguiça.

17 de Outubro de 2003

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RE: Re: Re:

Um dia aprendi que quando os olhos se abrem é para sempre. Que uma vez visitado o deserto passamos a transportá-lo connosco sob a pele. Mesmo este mundo, que não era o que os meus olhos queriam ver, agora acomoda-se à forma aberta do meu olhar. Aprendi que o buraco que tenho no peito não decresce, não diminui, não fecha, não substitui. Está presente, por vezes adormecido, por vezes silenciado, por vezes morno como a pele debaixo das camisolas de lã, outras tantas grita, lateja, ferve na sua polpa de ferida aberta. Prova-o esta minha existência constante de soluços cardíacos. Um dia, como tu, entristeci demais, e não há regresso ao antes disso. Trago sombras nos olhos, umas vezes nota-se outras não. Ainda temo o apagar da luz, não gosto de acordar cedo, não gosto de ser chamada às tarefas mundanas. Escrevo, sabendo que nenhuma palavra alcança o mundo. Sonho, sabendo que a matéria dos meus sonhos não se compara ao contorno vivo de uma ausência.


16 de Outubro de 2003

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Re: Re:

O que sei de mim é pouco mais que os pés irremediavelmente gelados no inverno, o transtorno que é recordar um amor que se despediu no verão, a cicatriz funda abaixo do joelho esquerdo que não me deixa esquecer que em criança não quis aprender a andar de bicicleta. Tenho medo do escuro e do que nele habita, custa-me o primeiro silêncio da noite e a resignação de apagar a luz. Gosto dos cachecóis de muitas cores e de camisolas brancas em Dezembro, gosto do barulho dos comboios na estação, gosto dos gatos pequeninos quando ainda não têm senão garras e orelhas. O meu pecado mortal é a preguiça e o mal de que sofro é de intimismo excessivo. Tenho os olhos carregados de sombras e uma promessa de azul nas pálpebras cerradas. Um dia recriei-me numa figura que habita o papel, de olhos esbulhagados para o vazio.

13 de Outubro de 2003

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Re: Re:

o canto escuro do quarto, conhece-lo bem
é sua a mesma matéria triste dos meus ombros
e eu já não reconhecia esse canto, já não sabia
que as portas portas fechadas rangem ao abrir
e lá do fundo um rumor se passeia pelas paredes
porque as mesmas sombras habitam o seu negro
quando entro
não sei de mim
mas ele sabe
esse canto
o que te assombra e fala contigo,
aquele a quem te confessas,
aquele que sabe tudo.

13 de Outubro de 2003

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domingo, 10 de junho de 2007

 

 

[canto]

 

 

surge o Outono batendo
as suas asas de noitibó.

13 de Outubro de 2003

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sem título e bastante breve #2

desarranjada de susto
experimento
arrisco
encolho-me ainda
inclino-me para não ver
o desastre
do primeiro passo.

11 de Outubro de 2003

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Medusa

 

 

Na pura face do horror
resta um brilho antigo de estátua
e as duras linhas que se movem
sobre a pele calcária
de súbito se fazem translúcidas
e livres

flutuam pelo ar
abraçadas de silêncio e de morte.

10 de Outubro de 2003

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assombro pelo dia de hoje #1

de que é que me lembro? que equívocos terei para contar quando já não houver vestígio deste vento? a certeza de que cada Outono é irrepetível, que não se detêm as mesmas ávores para que se aprenda o amor sob os seus ramos. não há uma única casa de paredes brancas na minha memória. invento a passagem dos dias como entre corredores estreitos e camisolas de lã. de que me lembro do que não fizemos?

6 de Outubro de 2003





assombro pelo dia de hoje #2

quanto tempo ainda até que das pedras cresçam árvores como cabelos? o cansaço assemelha-se a um pedaço de terra, como um peito cavalgado, um chão magoado que não sabe ainda ser húmus. quanto tempo até que o negro da ruína, ou a dor que ribomba sobre os ombros, encontre um outro corpo qualquer para desfigurar, ou talvez outras cordas para torcer?

8 de Outubro de 2003

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simplificando a geometria da paisagem #1

sob os plátanos
se desencontra a noite muda
do tempo prometido ao amor.

3 de Outubro de 2003





folha a folha
o abismo estende-se leito
certeza irredutível
da morte abandonada
das árvores

[gota a gota
em carne e cinza
me desfaço].

4 de Outubro de 2003





carregado o dia
de horas impossíveis
e de ramos negros
a nudez prometida
das árvores

[na sombra viva
me despeço
deste mês feito engano]

4 de Outubro de 2003





para que Outubro passe
para que o vento venha
para que o fruto caia
algo em mim se destroça
e arde em soluços

[neste corpo de fogo e chão
em polpa e terra
me desmancho].

4 de Outubro de 2003








simplificando a geometria da paisagem #2

as ruas ladeadas
de plátanos esqueceram
quem somos
por onde passámos.

8 de Outubro de 2003

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por tua causa
recordo a infância
vertebrada de afectos

por tua causa,
o cheiro das uvas
nas urzes dos montes

se me falam de figos
de mesas de Natal
de sol gelando na face
ou de qualquer outra coisa
densa próxima táctil

acredito na intimidade das sombras
na natureza outonal do meu nome.

22 de Setembro de 2003

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outonal #1

hoje
senti o cheiro das uvas
o negrume adoçando os dedos
bago a bago o outono deflagra

e eu ouço
o canto triste dos plátanos
os passos dúbios da chuva
como se em algum lugar
houvesse pão a cozer
e um fogo dentro de casa
noite escura pela tarde ainda a meio

e recordo
os risos em volta da escola
os joelhos esmurrados doridos
esse tom de infância
que nunca mais terei.

15 de Setembro de 2003





outonal #2

o lamento visível é
o corpo que não volta
a fazer-se tenro
como a promessa
de que há-de crescer

e nunca mais agora
poderei abraçar um plátano
com braços insuficientes
nem cair da bicicleta
para os silvados de amoras
ou sequer aquietar um pássaro
nas minhas mãos de criança

se não fui a tempo
de rir todos os risos
cair em todos os caminhos
sonhar todas as histórias
talvez agora encontre
uma sucessão de passos
semelhante à memória
das sombras na parede do quarto
dos casacos para enfrentar o vento
dos inesperados labirinos do medo

aguardo um Outono pacífico
um outro silêncio que não este
um poço de folhas para pousar
o corpo agora desmesurado
amedrontado e espectante.

22 de Setembro de 2003

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posted by saturnine | 15:44 | 0 comments

 

 

 

 

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arrisco
tão só esgravato
a terra com as unhas
sujas cortadas pobres

mas é na pedra que risco
que deixo o sangue
e pedaços de pele
o pouco de mim que
sobra para gastar
num voo rente ao chão

porque é precário ainda este solo
de urzes e cardos entrelaçados
e eu aqui esperando flores.
.........................................

15 de Setembro de 2003

 

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[poema de um desamor contínuo]

não é certo que me exiles
que das tuas mãos nada
cresça senão as pedras

o tecido desgastado do silêncio
está já esticado à beira da ruptura
um arco demasiado tenso que
arrisca rebentar-me nos braços

este solo pisado e magoado
vezes sem conta suspira já
o cansaço de ser ruína
ponte tactando lugar nenhum
senão o degredo a que me votas

não posso mais - porque não posso -
dar-me a este desconsolo
nem a noite é já suficiente
para que qualquer coisa se resgate

agora quero apenas a calma
ou alguma coisa parecida
um rumor imprevisto improvável

tudo menos este silêncio
esta brutalidade com que
pela indiferença me aniquilas.

3 de Setembro de 2003

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